quinta-feira, 2 de maio de 2013

A INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO BRASILEIRO

Em novembro de 2004 o Procurador-Geral da República propôs perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade em face do Decreto nº 4.346 de 26 de agosto de 2002 e seu Anexo I, no qual o Presidente da República aprovou o Regulamento Disciplinar do Exército (ADI nº. 3.340/DF).
Alegava Sua Excelência, que a citada norma continha vício formal de inconstitucionalidade, uma vez que o art. 5º, LXI da Constituição Federal reservou à “lei”, em sentido formal, a competência para dispor sobre as transgressões disciplinares militares.
Nossa suprema corte, numa decisão mais política do que jurídica, não conheceu daquela ação sob o seguinte argumento:

(...) cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial.1

Digo que houve na ocasião uma decisão política, porque como se sabe o vício formal de inconstitucionalidade contamina o ato normativo como um todo, ou seja, tudo que nele “habita” é inconstitucional, visto que, não se observou requisitos impostos pela Constituição para a sua formação.
E o que é mais curioso foi que o voto divergente que trouxe a argumentação acima transcrita, e, portanto, vencedora, foi do Min. Gilmar Mendes que em obra doutrinária, assim dispõe sobre a inconstitucionalidade formal:

Os vícios formais afetam o ato normativo singularmente considerado, sem atingir seu conteúdo, referindo-se aos pressupostos e procedimentos relativos à formação da lei.

Os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final.2
Assim, não é outra a conclusão, senão a de que aquilo que se decidiu na ADI nº. 3.340/DF, foi pautado em vários aspectos, menos no jurídico.
Contudo, lembro que a referida ação direta de inconstitucionalidade não foi conhecida, logo, o trânsito em julgado do acórdão, fez apenas coisa julgada formal, pois não se adentrou no mérito, não havendo óbice, portanto, para que a matéria volte à pauta de julgamentos do STF, e que os demais órgãos do Poder Judiciário declarem a inconstitucionalidade da citada norma.
Como dito anteriormente, através do Decreto nº 4.346 de 26 de agosto de 2002, o Presidente da República aprovou o Regulamento Disciplinar do Exército, “revogando” o regulamento anterior, Decreto nº 90.608 de 04 de dezembro de 1984, recepcionado este último, assim como os demais regulamentos das outras duas Forças Armadas (Marinha e Aeronáutica), com força de lei pela nova ordem constitucional inaugurada em 1988.
De início apresenta-se a primeira incongruência, pois se recepcionado com força de lei, somente outra lei de mesma posição hierárquica poderia revogar o Decreto nº 90.608/84 e não de posição hierárquica inferior como o decreto autônomo (ato administrativo).
Assim está disposto no preâmbulo do decreto sob exame: “O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e de acordo com o art. 47 da Lei no 6.880, de 9 de dezembro de 1980, decreta”. Examinemos os dois dispositivos contidos no preâmbulo.
O art. 84, IV da CRFB/88 atribui competência privativa ao Chefe do Poder Executivo para sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.
Já o art. 47 da Lei nº 6.880/80, dispõe que os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares, ou seja, transfere do Legislativo para o Executivo a competência para dispor sobre o tema.
Logo, através do Decreto nº 4.346/02 o Presidente da República conferiu vigência ao Regulamento Disciplinar do Exército, sendo este último um ato administrativo normativo elaborado em cumprimento à delegação de competência legislativa, contida no art. 47 da Lei nº 6.880/80.
Todavia, o art. 47 do Estatuto dos Militares não foi recepcionado pela CRFB/88, pois a mencionada delegação do Poder Legislativo ao Poder Executivo para que através de um ato administrativo (regulamento) se dispusesse sobre as transgressões disciplinares militares, foi revogada pelo art. 25 dos ADCT, pois, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição de 1988, sujeito este prazo a prorrogação por lei (que não houve no caso do dispositivo sob exame), todos os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional foram revogados.
Dispor sobre as Transgressões Disciplinares Militares é competência do Poder legislativo, conforme dispõe o art. 5º, LXI da Lei Maior: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei [grifo nosso]”, ou seja, o constituinte originário reservou à lei (em sentido formal) a competência para dispor sobre as transgressões disciplinares militares ou contravenções disciplinares militares.
Atenta-se para o fato de que o legislador constituinte originário empregou o adjetivo “definido” no plural, indicando claramente que à lei competiria definir o que seria crime propriamente militar e transgressão militar.
É sabido que quando a Constituição dispõe sobre “lei”, quer dizer lei em sentido formal, sendo imprescindível neste momento trazer o seguinte ensinamento do mestre José Afonso da Silva:

A palavra lei, para a realização plena do princípio da legalidade, se aplica em rigor técnico à lei formal, isto é, o ato legislativo emanado dos órgãos de representação popular, elaborado de conformidade com o processo legislativo previsto na Constituição [...].3

E prossegue:

Tem-se, pois, reserva de lei, quando uma norma constitucional atribui determinada matéria exclusivamente à lei formal, subtraindo-a, com isso, à disciplina de outras fontes àquelas subordinadas.4

Cabe ainda esclarecer que o art. 142, § 3º, X da CRFB/88 prevê que a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.
Especificamente sobre os “deveres” a Lei nº 6.880/80 dedica a Seção I do Capítulo II do seu Título II para conceituá-los e o Capítulo III do mesmo título para tratar das violações a esses deveres, dispondo que poderão constituir crime, transgressão ou contravenção de acordo com a opção político/legislativa (art. 42, caput da Lei nº 6.880/80). Os crimes ficaram à cargo do Código Penal Militar (art. 46 da Lei nº 6.880/80) e as transgressões ou contravenções, por esse dispositivo ter sido editado na vigência da Constituição pretérita, foram delegadas ao executivo dispor por meio de ato administrativo (art. 47 da Lei nº 6.880/80), não sendo, por conseguinte, recepcionado.
Em suma, seja pelo art. 5º, LXI, seja pelo art. 142, § 3º, X, a Constituição reserva à lei a competência para dispor sobre os deveres militares, as formas de violação e as respectivas conseqüências.
Porém, qual seria o motivo para o legislador constitucional originário incumbir à lei o papel de dispor sobre esses temas? 
A Constituição de 1988, conhecida como constituição cidadã, fortaleceu a proteção aos direitos fundamentais, dentre estes o da liberdade. Assim como a prática de um injusto penal pode desencadear uma resposta estatal – pena, a prática de uma transgressão disciplinar militar também exige uma resposta estatal no intuito de preservar os Princípios Constitucionais da Hierarquia e da Disciplina. Esta resposta é conhecida como sanção disciplinar militar.
Assim, tanto a sanção disciplinar militar (prisão e impedimento ou detenção) e a pena (restritiva de liberdade - reclusão e detenção), podem vir a cercear o direito de ir e vir do militar.
Logo, toda a gama de princípios que regem o ilícito penal devem ser aplicados aos ilícitos administrativos disciplinares militares como, por exemplo, a  Legalidade e a Taxatividade. Isto porque, está “em jogo” o direito sagrado e fundamental à liberdade, um dos pilares de sustentação do Estado democrático de direito.
Ademais, se evitaria eventuais injustiças e abusos por parte da Administração Militar através do acúmulo de poder, pois ao mesmo tempo definiria, julgaria e aplicaria as sanções disciplinares militares.
Nunca é demais lembrar que o principal fato gerador de indisciplina na caserna é a injustiça perpetrada pelos superiores hierárquicos em face dos subordinados. É a conclusão a que se pode chegar ao lançar um olhar mais atento sobre as causas dos grandes movimentos revoltosos nascidos no seio da sociedade militar como o do Couraçado Potemkin, em 1905 e a Revolta da Chibata no Brasil em 1910.
Sendo assim, filtrando-se as espécies normativas resultantes de processo legislativo, as transgressões disciplinares militares seriam normatizadas através de Lei Ordinária de iniciativa privativa do Presidente da República, uma vez que a lei iria dispor sobre militares das Forças Armadas (art. 61, § 1º, II, “f” da CRFB/88).
Crê-se que não seja possível dispor sobre as transgressões disciplinares militares através de Medida Provisória ou Lei Delegada, exatamente porque “em virtude de seu caráter provisório e a possibilidade de não conversão em lei, inclusive por rejeição do Congresso Nacional, é incompatível com postulado da segurança jurídica que o princípio [Legalidade] encerra5”.
Em razão do exposto, pode-se concluir que o Decreto nº 4.346/02 padece de vício de inconstitucionalidade formal em razão da violação de regra de competência para dispor sobre a matéria. “Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final6”.
Somente o Poder Legislativo através de lei em sentido formal poderá especificar e classificar as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecer as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.
Quanto aos efeitos repristinatórios de eventual declaração de inconstitucionalidade, seja em controle concentrado ou difuso, estes devem ser considerados pelo julgador no intuito de modulá-los, evitando lacunas que atentariam contra os princípios constitucionais da Hierarquia e da Disciplina.
Em controle difuso, o julgador poderia determinar a aplicação da norma revogada (Decreto nº 90.608/84).  Isto porque, como é sabido, quando uma lei é revogada por outra lei e esta é declarada inconstitucional, a primeira lei volta a ter a sua existência, validade e eficácia restauradas, pois a lei revogadora (inconstitucional) já “nasceu morta”, ou seja, é como se nunca tivesse existido. Isto se chama efeito repristinatório, que é diferente do fenômeno legislativo da repristinação disposto no art. 2º, § 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº. 4.657/42).
Já em controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal poderia, tanto adotar a solução anterior, quanto modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, fixando-se um prazo de “sobrevida” da norma viciada, viabilizando que o Executivo e o legislativo se mobilizem no intuito de editar lei dispondo sobre as transgressões disciplinares militares ou contravenções disciplinares militares em consonância com o texto constitucional.

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Daniel Accioly. Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes – RJ. Especialista em Direito Público, em Direito Militar e em Direito Penal, Direito Processual Penal e Criminologia.




2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 961.

3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 422-423.

4 Idem.

QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral de acordo com a Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010,  p. 49.  

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. p. 961.

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