Em novembro de
2004 o Procurador-Geral da República propôs perante o Supremo Tribunal Federal,
Ação Direta de Inconstitucionalidade em face do Decreto nº 4.346 de 26 de
agosto de 2002 e seu Anexo I, no qual o Presidente da República aprovou o
Regulamento Disciplinar do Exército (ADI nº. 3.340/DF).
Alegava
Sua Excelência, que a citada norma continha vício formal de
inconstitucionalidade, uma vez que o art. 5º, LXI da Constituição Federal
reservou à “lei”, em sentido formal, a competência para dispor sobre as
transgressões disciplinares militares.
Nossa suprema corte, numa decisão mais política do que
jurídica, não conheceu daquela ação sob o seguinte argumento:
E o que é mais curioso foi que o voto divergente que trouxe
a argumentação acima transcrita, e, portanto, vencedora, foi do Min. Gilmar
Mendes que em obra doutrinária, assim dispõe sobre a inconstitucionalidade
formal:
Assim, não é outra a conclusão, senão a de que aquilo que
se decidiu na ADI nº. 3.340/DF, foi pautado em vários aspectos, menos no
jurídico.
Contudo, lembro que a referida ação direta de
inconstitucionalidade não foi conhecida, logo, o trânsito em julgado do
acórdão, fez apenas coisa julgada formal, pois não se adentrou no mérito, não
havendo óbice, portanto, para que a matéria volte à pauta de julgamentos do
STF, e que os demais órgãos do Poder Judiciário declarem a
inconstitucionalidade da citada norma.
Como dito anteriormente, através do Decreto nº 4.346 de 26
de agosto de 2002, o Presidente da República aprovou o Regulamento Disciplinar
do Exército, “revogando” o regulamento anterior, Decreto nº 90.608 de 04 de
dezembro de 1984, recepcionado este último, assim como os demais regulamentos
das outras duas Forças Armadas (Marinha e Aeronáutica), com força de lei pela
nova ordem constitucional inaugurada em 1988.
De início apresenta-se a primeira incongruência, pois se
recepcionado com força de lei, somente outra lei de mesma posição hierárquica
poderia revogar o Decreto nº 90.608/84 e não de posição hierárquica inferior
como o decreto autônomo (ato administrativo).
Assim está disposto no preâmbulo do decreto sob
exame: “O Presidente da República, usando da atribuição que lhe
confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e de acordo com o art. 47 da Lei
no 6.880, de 9 de dezembro de 1980, decreta”. Examinemos os dois
dispositivos contidos no preâmbulo.
O art. 84, IV da CRFB/88 atribui competência privativa ao
Chefe do Poder Executivo para sancionar, promulgar e fazer publicar as leis,
bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.
Já o art. 47 da Lei nº 6.880/80, dispõe que os regulamentos
disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções
ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude
e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e
à interposição de recursos contra as penas disciplinares, ou seja, transfere do
Legislativo para o Executivo a competência para dispor sobre o tema.
Logo, através do Decreto nº 4.346/02 o Presidente da
República conferiu vigência ao Regulamento Disciplinar do Exército, sendo este
último um ato administrativo normativo elaborado em cumprimento à delegação de
competência legislativa, contida no art. 47 da Lei nº 6.880/80.
Todavia, o art. 47 do Estatuto dos Militares não foi
recepcionado pela CRFB/88, pois a mencionada delegação do Poder Legislativo ao
Poder Executivo para que através de um ato administrativo (regulamento) se
dispusesse sobre as transgressões disciplinares militares, foi revogada pelo
art. 25 dos ADCT, pois, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da
Constituição de 1988, sujeito este prazo a prorrogação por lei (que não houve
no caso do dispositivo sob exame), todos os dispositivos legais que atribuíam
ou delegavam a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela
Constituição ao Congresso Nacional foram revogados.
Dispor sobre as Transgressões Disciplinares Militares é
competência do Poder legislativo, conforme dispõe o art. 5º, LXI da Lei
Maior: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita
e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei [grifo nosso]”,
ou seja, o constituinte originário reservou à lei (em sentido formal) a
competência para dispor sobre as transgressões disciplinares militares ou
contravenções disciplinares militares.
Atenta-se para o fato de que o legislador constituinte
originário empregou o adjetivo “definido” no plural, indicando claramente que à
lei competiria definir o que seria crime propriamente militar e transgressão
militar.
É sabido que quando a Constituição dispõe sobre “lei”, quer
dizer lei em sentido formal, sendo imprescindível neste momento trazer o
seguinte ensinamento do mestre José Afonso da Silva:
Especificamente sobre os “deveres” a Lei nº 6.880/80 dedica
a Seção I do Capítulo II do seu Título II para conceituá-los e o Capítulo III
do mesmo título para tratar das violações a esses deveres, dispondo que poderão
constituir crime, transgressão ou contravenção de acordo com a opção
político/legislativa (art. 42, caput da Lei nº 6.880/80). Os crimes ficaram à
cargo do Código Penal Militar (art. 46 da Lei nº 6.880/80) e as transgressões
ou contravenções, por esse dispositivo ter sido editado na vigência da
Constituição pretérita, foram delegadas ao executivo dispor por meio de ato
administrativo (art. 47 da Lei nº 6.880/80), não sendo, por conseguinte,
recepcionado.
Em suma, seja pelo art. 5º, LXI, seja pelo art. 142, § 3º,
X, a Constituição reserva à lei a competência para dispor sobre os deveres
militares, as formas de violação e as respectivas conseqüências.
Porém, qual seria o motivo para o legislador constitucional
originário incumbir à lei o papel de dispor sobre esses temas?
A Constituição de 1988, conhecida como constituição cidadã,
fortaleceu a proteção aos direitos fundamentais, dentre estes o da liberdade. Assim
como a prática de um injusto penal pode desencadear uma resposta estatal –
pena, a prática de uma transgressão disciplinar militar também exige uma
resposta estatal no intuito de preservar os Princípios Constitucionais da
Hierarquia e da Disciplina. Esta resposta é conhecida como sanção disciplinar
militar.
Assim, tanto a sanção disciplinar militar (prisão e
impedimento ou detenção) e a pena (restritiva de liberdade - reclusão e
detenção), podem vir a cercear o direito de ir e vir do militar.
Logo, toda a gama de princípios que regem o ilícito penal
devem ser aplicados aos ilícitos administrativos disciplinares militares como,
por exemplo, a Legalidade e a Taxatividade. Isto porque, está “em jogo” o
direito sagrado e fundamental à liberdade, um dos pilares de sustentação do
Estado democrático de direito.
Ademais, se evitaria eventuais injustiças e abusos por
parte da Administração Militar através do acúmulo de poder, pois ao mesmo tempo
definiria, julgaria e aplicaria as sanções disciplinares militares.
Nunca é demais lembrar que o principal fato gerador de
indisciplina na caserna é a injustiça perpetrada pelos superiores hierárquicos
em face dos subordinados. É a conclusão a que se pode chegar ao lançar um olhar
mais atento sobre as causas dos grandes movimentos revoltosos nascidos no seio
da sociedade militar como o do Couraçado Potemkin, em 1905 e a Revolta da
Chibata no Brasil em 1910.
Sendo assim, filtrando-se as espécies normativas
resultantes de processo legislativo, as transgressões disciplinares militares
seriam normatizadas através de Lei Ordinária de iniciativa privativa do
Presidente da República, uma vez que a lei iria dispor sobre militares das
Forças Armadas (art. 61, § 1º, II, “f” da CRFB/88).
Crê-se que não seja possível dispor sobre as transgressões
disciplinares militares através de Medida Provisória ou Lei Delegada,
exatamente porque “em virtude de seu caráter provisório e a possibilidade de
não conversão em lei, inclusive por rejeição do Congresso Nacional, é
incompatível com postulado da segurança jurídica que o princípio [Legalidade]
encerra5”.
Em razão do exposto, pode-se concluir que o Decreto nº
4.346/02 padece de vício de inconstitucionalidade formal em razão da violação
de regra de competência para dispor sobre a matéria. “Nesses casos, viciado é o
ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final6”.
Somente o Poder Legislativo através de lei em sentido
formal poderá especificar e classificar as contravenções ou transgressões
disciplinares e estabelecer as normas relativas à amplitude e aplicação das
penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição
de recursos contra as penas disciplinares.
Quanto aos efeitos repristinatórios de eventual declaração
de inconstitucionalidade, seja em controle concentrado ou difuso, estes devem
ser considerados pelo julgador no intuito de modulá-los, evitando lacunas que
atentariam contra os princípios constitucionais da Hierarquia e da Disciplina.
Em controle difuso, o julgador poderia determinar a
aplicação da norma revogada (Decreto nº 90.608/84). Isto porque, como é
sabido, quando uma lei é revogada por outra lei e esta é declarada
inconstitucional, a primeira lei volta a ter a sua existência, validade e
eficácia restauradas, pois a lei revogadora (inconstitucional) já “nasceu
morta”, ou seja, é como se nunca tivesse existido. Isto se chama efeito
repristinatório, que é diferente do fenômeno legislativo da repristinação
disposto no art. 2º, § 3º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
(Decreto-Lei nº. 4.657/42).
Já em controle concentrado, o Supremo Tribunal Federal
poderia, tanto adotar a solução anterior, quanto modular os efeitos da
declaração de inconstitucionalidade, fixando-se um prazo de “sobrevida” da
norma viciada, viabilizando que o Executivo e o legislativo se mobilizem no
intuito de editar lei dispondo sobre as transgressões disciplinares militares
ou contravenções disciplinares militares em consonância com o texto
constitucional.
Daniel Accioly. Advogado.
Graduado em Direito pela Universidade Cândido Mendes – RJ. Especialista
em Direito Público, em Direito Militar e em Direito Penal, Direito
Processual Penal e Criminologia.
2 MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 961.
3 SILVA,
José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 16 ed., São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 422-423.
4 Idem.
5 QUEIROZ,
Paulo. Direito Penal: parte
geral de acordo com a Lei nº 12.015 de 07 de agosto de 2009. 6. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris. 2010, p. 49.
6 MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op.
cit. p. 961.
(...) cabe
ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a
análise tão-somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida
na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e
normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de
indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as
transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar
eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas
disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas
deveriam ser devidamente atacadas na inicial.1
Digo que houve
na ocasião uma decisão política, porque como se sabe o vício formal de
inconstitucionalidade contamina o ato normativo como um todo, ou seja, tudo que
nele “habita” é inconstitucional, visto que, não se observou requisitos
impostos pela Constituição para a sua formação.
Os vícios
formais afetam o ato normativo singularmente considerado, sem atingir seu
conteúdo, referindo-se aos pressupostos e procedimentos relativos à formação da
lei.
Os vícios
formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de
princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de
competência. Nesses casos, viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu
procedimento de formação, na sua forma final.2
A palavra
lei, para a realização plena do princípio da legalidade, se aplica em rigor
técnico à lei formal, isto é, o ato legislativo emanado dos órgãos de
representação popular, elaborado de conformidade com o processo legislativo
previsto na Constituição [...].3
E prossegue:
Tem-se,
pois, reserva de lei, quando uma norma constitucional atribui determinada
matéria exclusivamente à lei formal, subtraindo-a, com isso, à disciplina de
outras fontes àquelas subordinadas.4
Cabe ainda
esclarecer que o art. 142, § 3º, X da CRFB/88 prevê que a lei disporá sobre o
ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras
condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os
deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares,
consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas
por força de compromissos internacionais e de guerra.
______________________
1 BRASIL,
Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=3340&classe=ADI&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>.
Acesso em: 12 mai. 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário, dúvida, crítica ou sugestão.